segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Crítica ao espetáculo "Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens"

         Nos dias 16,17 e 18 de agosto deste ano de 2016, esteve em cartaz no Itaú Cultural, o espetáculo “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, o espetáculo é uma proposição do ator Jé Oliveira e aborda a construção da masculinidade negra na periferia de São Paulo, o espetáculo foi concebido a partir de entrevistas com 12 homens negros, são eles: Akins Kintê, Allan da Rosa, Aloysio Letra, Fernando Alabê, João Nascimento, DJ KL Jay (Racionais MC’s), Melvin Santhana, Renato Ihu, Salloma Salomão, Seu Luis Livreiro, Will Oliveir e Zinho Trindade. Houve tentativa de entender se haviam similaridades nas trajetórias destes 12 homens negros, para entender como a masculinidade negra é construída nas periferias de São Paulo.
             Desde a fila a de espera para a retirada dos ingressos, é perceptível que o público para aquele espetáculo não era um público comum à instituição Itaú Cultural, porém comum ao Coletivo Negro, ou aos grupos de Teatro Negro, via-se um público predominantemente negro, majoritariamente homens negros, nada mais justo em uma peça em que eles se veem representados!
Uma hora antes do espetáculo se iniciar são distribuídos ingressos, o espetáculo começou ás 20h, logo os ingressos começaram a ser distribuídos as 19h, ás 17:30 já haviam pelo menos 50 pessoas na fila, a lotação era de 200 lugares. Após a distribuição dos ingressos, este publico predominantemente negro se espalhou pela Avenida Paulista, para comer, passear, ir a outro espaço cultural, entre outras coisas, fazendo com que no meio tempo entre a distribuição dos ingressos e o início do espetáculo,houvesse temporariamente uma ocupação negra na Avenida Paulista.
Quando chegamos a sala de espetáculo, vemos um cenário formado por quadros bidimensionais feitos de madeira que ficam a frente do palco, três deles nos fazem lembrar de Douglas Rodrigues, adolescente negro de 17 anos, morto pela polícia em 2013, em Jaçanã, Zona Norte de São Paulo, lembramos de sua pergunta para o policial que tirou sua vida “Por que o senhor atirou em mim?”, Vimos ao fundo nas palavras dos Racionais Mc’s “Castelo(s) de Madeira” que podem nos remeter a ideia de uma favela, além da banda composta por Fernando Alabê, Cássio Martins, Mauá Martins, Melvin Santhana e neste dia 18/08 o DJ KL Jay, Os figurinos de todos eles são brancos.
O espetáculo como uma obra tributária ao legado dos Racionais MC’s é bastante musicado, por muitos vezes nos sentimos em show musical, o trabalho de música dirigido pelo genial Fernando Alabê e é bastante sofisticado, é possível perceber que o público está bastante presente, o público começou a reagir desde o começo, desde que KL Jay, discotecou de forma cortada os primeiros versos de Jorge da Capadócia e um Homem na Estrada, há um público muito a vontade e muito familiarizado com a obra dos Racionais MC’s, que em seus lugares dança. É necessário dizer que nesta crítica não analiso todas as pessoas do público, isso seria impossível, analiso e descrevo as ações do público majoritário.
O primeiro ato do espetáculo denomina-se “Morrendo” é um ato bastante dolorido, que traz a cena como jovens negros são mortos, alguns casos de grande repercussão são citados, como por exemplo, o massacre ocorrido em 02 de outubro de 1992 no Carandiru, em que 111 homens, em sua maioria negros, foram mortos, cita-se também Wilton (20 anos) Wesley (25 anos), Roberto e Carlos Eduardo (ambos com 16 anos),e  Cleiton (18 anos), cinco jovens negros assassinados com 111 tiros no final do ano passado, ou o menino negro,  que foi espancado e amarrado nu em poste na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Ao trazer essas notícias o espetáculo denúncia o quão absurdo é matar jovens negros apenas por sua cor de pele, diz, grita que esses n não devem morrer, só porque são pretos, neste trecho o espetáculo se propõe a pensar, tudo que não foi possível para esses jovens negros realizarem devido aos seus assassinatos prematuros causadas por violência policial ou civil, diversas vezes ao narrar essas mortes há a pergunta “-merecia morrer daquele jeito só porque é preto?”  Além disso, humaniza esses jovens negros assassinados, questiona e faz refletir através de frases como, “-será que deu tempo de olhar nos olhos e dizer eu te amo?”, “-será que deu tempo de ouvir eu te amo?”
Os mortos (jovens negros assassinados) são trazidos no cenário, no texto, ou até mesmo em roupas, este primeiro ato, tal como é ditado durante o espetáculo sobre a obra dos Racionais MC’s, versa muito sobre morte, mas versa sobretudo sobre vida, (vida e resistência).
Durante todo o espetáculo também temos uma dramaturgia que é centrada em perguntas e que muito se utiliza do recurso da repetição, algumas vezes a Antiga, é mencionada, o que proporciona para quem acompanha a produção do Coletivo Negro, uma relação com o primeiro espetáculo do grupo – “Movimento nº1 – O Silêncio de Depois”, espetáculo que contém essa personagem.
No segundo ato, após lembrar de tanto dor é necessário presentear o público, com vida, neste ato, denominado “Sendo”, somos diversas vezes presenteados, nosso primeiro presente neste ato, ,é quando uma figura que chamarei de a avó surge em cena, com sua coroa, que é feita por uma abóbora, seu cesto de frutas, com sua entrada há um menino que faz diversas perguntas a essa avó e somos presenteados, quando ouvimos um áudio com sua voz, suas respostas.
Somos presenteados quando todos do elenco se trajam, se cumprimentam e dançam Jackson Five, fazendo referências aos bailes blackes de tradição estadunidense, que popularizam-se no Brasil em meados de 1980 e 1990, após essa cena o público vibra e aplaude.
Somos presenteados quando ouvimos a história do jovem negro que pedia carona no ônibus para vir ao centro de São Paulo, ia na galera do Reggae e ouvia as ideias que eram passadas ali, o mesmo garoto que leu Malcom X, como quem come com fome, que ostentava sua capa, fazia questão de abri-lo no ônibus e mostrava nele seu conteúdo.
Somos também presenteados com comida, é perceptível na produção do Coletivo Negro, que o público sempre recebe algo, no já citado “Movimento nº1 – O Silêncio de Depois” quando o público adentra o espaço cênico recebe um punhado de terra, em “Entre”, o público recebe café (mesmo que frio), neste espetáculo, após perguntar para a tia “- Tia tem pão?” a tia diz não, e para a mãe “- Mãe tem pão”, a mãe responde, “Não, só farinha com açúcar”, neste momento Jé Oliveira, está no público e distribui copos descartáveis que contém farinha com açúcar, o público se organiza para experimentar o alimento e compartilhar com que está próximo.
Somos presenteados também com o riso, sobretudo aos que se identificam, quando a dramaturgia traz a cena, a vontade de ter Nike, Rebook, entre outras marcas, para aquele menino negro que usava Bamba e KiChute, que só usava tênis em ocasiões especiais, como festas ou ir na igreja, que usava roupas doadas e tinha vergonha disso e queria ter outras coisas, o público ria muito, gargalhava neste momento, só podia ser riso de identificação, riso de quem já passou por essa situação, o público que ria de sua dor passada..
Além disso, descobrimos sobre a importância da obra dos Racionais MC’s para esse espetáculo, quando um amigo da personagem que conduz a peça vai mostrar uma fita (cassete mesmo, como dito na dramaturgia, recebida pelos risos do público), e toca-se “fim de semana no parque”. Percebemos o quanto este grupo de rap foi importante para o pertencimento racial e formação política do ator em cena, por vezes, somos levados a pensar que as biografias dos 12 homens negros entrevistados, formam ou confundem-se com a biografia do homem negro que está em cena.
Já caminhando para o final do espetáculo, quando o ator Jé Oliveira está no público e traz contexto político atual de nosso país, o público é  convidado a refletir com ele e pensar o que precisamos fazer para uma mudança política, ouvimos Fora Temer! Um Fora Temer coletivo é gritado, o ator diz, que além de Fora Temer, outras coisas são necessário, alguém grita “-Fogo na babilônia”, risos e aplausos,  por último “Liberdade para Rafael Braga” ouve-se pow pow pow.
Em um espetáculo em que há a presença de KL Jay é justo com o público, que haja um momento em que este discote,  isso acontece perto do fim do espetáculo, a partir de um jogo muito bem-humorado entre KL Jay e Jé Oliveira, neste jogo diversas músicas são discotecadas, até que chega-se a uma música icônica dos Racionais MC’s, neste dia música foi Vida Loka parte II, haviam dois jovens negros que cantavam juntos a letra da música, Jé Oliveira muito justo passa o microfone para os dois, que cantam a música inteira, em alguns momentos o público responde os diálogos da música, como por exemplo, “E meus guerreiros de fé, quero ouvi,  quero ouvir, e meus guerreiro de fé quero ouvir, quero ouvir” o público responde aos dois “programado pra morrer nóis é, certo é certo, dê no que dê”. Durante sua participação no espetáculo os dois levantam o punho cerrado, referência do movimento Black Power, o público e o elenco respondem e fazem o gesto junto, encerra-se a experiência estética daquela noite.
Este espetáculo o tempo toda se baseia em humanizar os jovens negros, denuncia suas mortes causadas pelo racismo e além disso, mostra a possibilidade de ter alguns direitos muitos simples que lhes são tirados, como o direito de querer, de ter perspectivas de futuro.
 O espetáculo propõe-se a dialogar de forma muito direta com seu público, fazendo com que o público negro se identifique pois se vê representado e convida o público branco a refletir sobre as complexidades das trajetórias dos homens negros.
Sobre o Coletivo Negro
Para contextualizar brevemente em relação ao Coletivo Negro é necessário dizer que o cerne do coletivo se instaura em 2007, a partir de um exercício de direção de Jé Oliveira, forma-se então um grupo de estudos para pensar um teatro comprometido com questões poéticas-etnico-raciais, em 2008 se instaura como grupo de teatro, todas (os) atrizes e atores do Coletivo Negro, tem sua formação pela Escola Livre de Teatro (ELT) de Santo André, exceto Raphael Garcia que tem sua formação pela Escola de Arte Dramática do Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (EAD/CAC/USP).
Sobre o 25ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

O espetáculo é uma das ações do projeto “Coletivo Negro – A concretude Imaterial do que Somos: Símbolos, Mitologias e Identidades” contemplado pela 25ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, em que atrizes e atores do grupo puderam aprofundar pesquisas que circundavam sua produção até então, além do espetáculo “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, foram desenvolvidos os espetáculos Ida (proposição de Aysha Nascimento), o espetáculo aborda a trajetória e os espaços das mulheres negras na sociedade, Revolver (proposição de Raphael Garcia), este espetáculo propõe pensar a construção do Teatro Negro através de tradições populares e Catula (proposição de Thais Dias), espetáculo que aborda a estética negra.