segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Crítica ao espetáculo "Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens"

         Nos dias 16,17 e 18 de agosto deste ano de 2016, esteve em cartaz no Itaú Cultural, o espetáculo “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, o espetáculo é uma proposição do ator Jé Oliveira e aborda a construção da masculinidade negra na periferia de São Paulo, o espetáculo foi concebido a partir de entrevistas com 12 homens negros, são eles: Akins Kintê, Allan da Rosa, Aloysio Letra, Fernando Alabê, João Nascimento, DJ KL Jay (Racionais MC’s), Melvin Santhana, Renato Ihu, Salloma Salomão, Seu Luis Livreiro, Will Oliveir e Zinho Trindade. Houve tentativa de entender se haviam similaridades nas trajetórias destes 12 homens negros, para entender como a masculinidade negra é construída nas periferias de São Paulo.
             Desde a fila a de espera para a retirada dos ingressos, é perceptível que o público para aquele espetáculo não era um público comum à instituição Itaú Cultural, porém comum ao Coletivo Negro, ou aos grupos de Teatro Negro, via-se um público predominantemente negro, majoritariamente homens negros, nada mais justo em uma peça em que eles se veem representados!
Uma hora antes do espetáculo se iniciar são distribuídos ingressos, o espetáculo começou ás 20h, logo os ingressos começaram a ser distribuídos as 19h, ás 17:30 já haviam pelo menos 50 pessoas na fila, a lotação era de 200 lugares. Após a distribuição dos ingressos, este publico predominantemente negro se espalhou pela Avenida Paulista, para comer, passear, ir a outro espaço cultural, entre outras coisas, fazendo com que no meio tempo entre a distribuição dos ingressos e o início do espetáculo,houvesse temporariamente uma ocupação negra na Avenida Paulista.
Quando chegamos a sala de espetáculo, vemos um cenário formado por quadros bidimensionais feitos de madeira que ficam a frente do palco, três deles nos fazem lembrar de Douglas Rodrigues, adolescente negro de 17 anos, morto pela polícia em 2013, em Jaçanã, Zona Norte de São Paulo, lembramos de sua pergunta para o policial que tirou sua vida “Por que o senhor atirou em mim?”, Vimos ao fundo nas palavras dos Racionais Mc’s “Castelo(s) de Madeira” que podem nos remeter a ideia de uma favela, além da banda composta por Fernando Alabê, Cássio Martins, Mauá Martins, Melvin Santhana e neste dia 18/08 o DJ KL Jay, Os figurinos de todos eles são brancos.
O espetáculo como uma obra tributária ao legado dos Racionais MC’s é bastante musicado, por muitos vezes nos sentimos em show musical, o trabalho de música dirigido pelo genial Fernando Alabê e é bastante sofisticado, é possível perceber que o público está bastante presente, o público começou a reagir desde o começo, desde que KL Jay, discotecou de forma cortada os primeiros versos de Jorge da Capadócia e um Homem na Estrada, há um público muito a vontade e muito familiarizado com a obra dos Racionais MC’s, que em seus lugares dança. É necessário dizer que nesta crítica não analiso todas as pessoas do público, isso seria impossível, analiso e descrevo as ações do público majoritário.
O primeiro ato do espetáculo denomina-se “Morrendo” é um ato bastante dolorido, que traz a cena como jovens negros são mortos, alguns casos de grande repercussão são citados, como por exemplo, o massacre ocorrido em 02 de outubro de 1992 no Carandiru, em que 111 homens, em sua maioria negros, foram mortos, cita-se também Wilton (20 anos) Wesley (25 anos), Roberto e Carlos Eduardo (ambos com 16 anos),e  Cleiton (18 anos), cinco jovens negros assassinados com 111 tiros no final do ano passado, ou o menino negro,  que foi espancado e amarrado nu em poste na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Ao trazer essas notícias o espetáculo denúncia o quão absurdo é matar jovens negros apenas por sua cor de pele, diz, grita que esses n não devem morrer, só porque são pretos, neste trecho o espetáculo se propõe a pensar, tudo que não foi possível para esses jovens negros realizarem devido aos seus assassinatos prematuros causadas por violência policial ou civil, diversas vezes ao narrar essas mortes há a pergunta “-merecia morrer daquele jeito só porque é preto?”  Além disso, humaniza esses jovens negros assassinados, questiona e faz refletir através de frases como, “-será que deu tempo de olhar nos olhos e dizer eu te amo?”, “-será que deu tempo de ouvir eu te amo?”
Os mortos (jovens negros assassinados) são trazidos no cenário, no texto, ou até mesmo em roupas, este primeiro ato, tal como é ditado durante o espetáculo sobre a obra dos Racionais MC’s, versa muito sobre morte, mas versa sobretudo sobre vida, (vida e resistência).
Durante todo o espetáculo também temos uma dramaturgia que é centrada em perguntas e que muito se utiliza do recurso da repetição, algumas vezes a Antiga, é mencionada, o que proporciona para quem acompanha a produção do Coletivo Negro, uma relação com o primeiro espetáculo do grupo – “Movimento nº1 – O Silêncio de Depois”, espetáculo que contém essa personagem.
No segundo ato, após lembrar de tanto dor é necessário presentear o público, com vida, neste ato, denominado “Sendo”, somos diversas vezes presenteados, nosso primeiro presente neste ato, ,é quando uma figura que chamarei de a avó surge em cena, com sua coroa, que é feita por uma abóbora, seu cesto de frutas, com sua entrada há um menino que faz diversas perguntas a essa avó e somos presenteados, quando ouvimos um áudio com sua voz, suas respostas.
Somos presenteados quando todos do elenco se trajam, se cumprimentam e dançam Jackson Five, fazendo referências aos bailes blackes de tradição estadunidense, que popularizam-se no Brasil em meados de 1980 e 1990, após essa cena o público vibra e aplaude.
Somos presenteados quando ouvimos a história do jovem negro que pedia carona no ônibus para vir ao centro de São Paulo, ia na galera do Reggae e ouvia as ideias que eram passadas ali, o mesmo garoto que leu Malcom X, como quem come com fome, que ostentava sua capa, fazia questão de abri-lo no ônibus e mostrava nele seu conteúdo.
Somos também presenteados com comida, é perceptível na produção do Coletivo Negro, que o público sempre recebe algo, no já citado “Movimento nº1 – O Silêncio de Depois” quando o público adentra o espaço cênico recebe um punhado de terra, em “Entre”, o público recebe café (mesmo que frio), neste espetáculo, após perguntar para a tia “- Tia tem pão?” a tia diz não, e para a mãe “- Mãe tem pão”, a mãe responde, “Não, só farinha com açúcar”, neste momento Jé Oliveira, está no público e distribui copos descartáveis que contém farinha com açúcar, o público se organiza para experimentar o alimento e compartilhar com que está próximo.
Somos presenteados também com o riso, sobretudo aos que se identificam, quando a dramaturgia traz a cena, a vontade de ter Nike, Rebook, entre outras marcas, para aquele menino negro que usava Bamba e KiChute, que só usava tênis em ocasiões especiais, como festas ou ir na igreja, que usava roupas doadas e tinha vergonha disso e queria ter outras coisas, o público ria muito, gargalhava neste momento, só podia ser riso de identificação, riso de quem já passou por essa situação, o público que ria de sua dor passada..
Além disso, descobrimos sobre a importância da obra dos Racionais MC’s para esse espetáculo, quando um amigo da personagem que conduz a peça vai mostrar uma fita (cassete mesmo, como dito na dramaturgia, recebida pelos risos do público), e toca-se “fim de semana no parque”. Percebemos o quanto este grupo de rap foi importante para o pertencimento racial e formação política do ator em cena, por vezes, somos levados a pensar que as biografias dos 12 homens negros entrevistados, formam ou confundem-se com a biografia do homem negro que está em cena.
Já caminhando para o final do espetáculo, quando o ator Jé Oliveira está no público e traz contexto político atual de nosso país, o público é  convidado a refletir com ele e pensar o que precisamos fazer para uma mudança política, ouvimos Fora Temer! Um Fora Temer coletivo é gritado, o ator diz, que além de Fora Temer, outras coisas são necessário, alguém grita “-Fogo na babilônia”, risos e aplausos,  por último “Liberdade para Rafael Braga” ouve-se pow pow pow.
Em um espetáculo em que há a presença de KL Jay é justo com o público, que haja um momento em que este discote,  isso acontece perto do fim do espetáculo, a partir de um jogo muito bem-humorado entre KL Jay e Jé Oliveira, neste jogo diversas músicas são discotecadas, até que chega-se a uma música icônica dos Racionais MC’s, neste dia música foi Vida Loka parte II, haviam dois jovens negros que cantavam juntos a letra da música, Jé Oliveira muito justo passa o microfone para os dois, que cantam a música inteira, em alguns momentos o público responde os diálogos da música, como por exemplo, “E meus guerreiros de fé, quero ouvi,  quero ouvir, e meus guerreiro de fé quero ouvir, quero ouvir” o público responde aos dois “programado pra morrer nóis é, certo é certo, dê no que dê”. Durante sua participação no espetáculo os dois levantam o punho cerrado, referência do movimento Black Power, o público e o elenco respondem e fazem o gesto junto, encerra-se a experiência estética daquela noite.
Este espetáculo o tempo toda se baseia em humanizar os jovens negros, denuncia suas mortes causadas pelo racismo e além disso, mostra a possibilidade de ter alguns direitos muitos simples que lhes são tirados, como o direito de querer, de ter perspectivas de futuro.
 O espetáculo propõe-se a dialogar de forma muito direta com seu público, fazendo com que o público negro se identifique pois se vê representado e convida o público branco a refletir sobre as complexidades das trajetórias dos homens negros.
Sobre o Coletivo Negro
Para contextualizar brevemente em relação ao Coletivo Negro é necessário dizer que o cerne do coletivo se instaura em 2007, a partir de um exercício de direção de Jé Oliveira, forma-se então um grupo de estudos para pensar um teatro comprometido com questões poéticas-etnico-raciais, em 2008 se instaura como grupo de teatro, todas (os) atrizes e atores do Coletivo Negro, tem sua formação pela Escola Livre de Teatro (ELT) de Santo André, exceto Raphael Garcia que tem sua formação pela Escola de Arte Dramática do Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (EAD/CAC/USP).
Sobre o 25ª Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

O espetáculo é uma das ações do projeto “Coletivo Negro – A concretude Imaterial do que Somos: Símbolos, Mitologias e Identidades” contemplado pela 25ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, em que atrizes e atores do grupo puderam aprofundar pesquisas que circundavam sua produção até então, além do espetáculo “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, foram desenvolvidos os espetáculos Ida (proposição de Aysha Nascimento), o espetáculo aborda a trajetória e os espaços das mulheres negras na sociedade, Revolver (proposição de Raphael Garcia), este espetáculo propõe pensar a construção do Teatro Negro através de tradições populares e Catula (proposição de Thais Dias), espetáculo que aborda a estética negra.







segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Quando descobri que sou preto

“Vou contar a minha história, porque eu também tenho uma”.
Ericka Huggins (mulher negra, ativista, estadunidense, integrante dos Black Panther Party)


Hoje sinto a necessidade de contar como me descobri ( e ainda estou me descobrindo) enquanto preto, o que abarcará uma breve discussão sobre mestiçagem.
Quando vejo alguns casos, como por exemplo, o Neymar que diz que não é preto, ou Caio (namorado da Jout Jout) que se autodeclara pardo. Recordo como foi difícil que eu me reconhecesse enquanto preto. Eu sempre soube que eu não era branco, não só pela cor de minha pele, cabelo, traços, mas também pelos lugares que eu nem eu, nem meus ancestrais ocupamos, porém há uma grande diferença entre não ser branco e ser preto.
É importante ressaltar que de forma alguma a miscigenação no Brasil foi historicamente simples, também que um dos fatores para a miscigenação foi o estupro de mulheres negras escravizadas pelos seus colonizadores, mulheres indígenas também foram violentadas. As Pessoas pretas foram culpabilizadas pelo atraso da nação brasileira, houve um plano eugenista, que previa que através da “mistura de raças” a extinção das pessoas negras até 2012, assim então o Brasil seria uma nação desenvolvida.
Como grande parte da população brasileira venho de um contexto de miscigenação, em que a família de minha mãe é composta da relação entre indígenas e brancos, enquanto a família de meu pai resistiu e constitui-se apenas por pessoas negras. A única pessoa não negra que transitou nesta família foi minha mãe, que se autodeclara parda, foi a primeira pessoa, talvez a única que eu vi ficar ofendida ao ser chamada de branca.
Nos meus primeiros ambientes de sociabilização, família e escola, lembro de ter sido chamado de moreno, mulato, pardo, moreno jambo, marrom bombom, diversos outros eufemismos que pessoas pretas estão cansadas de ouvir, até porque ser preto era e ainda é para muitos um problema, um xingamento.
Uma das minhas principais problemáticas para me entender e me assumir como preto, ainda me é muito difícil de explicar, provavelmente ficará confuso, mas tentarei. Como já disse a família de meu pai é composta exclusivamente de pessoas negras, logo há pessoas mais escuras do que eu. Então para mim essas pessoas eram negros, enquanto eu era parecido, mas não igual. Existia um não lugar, com as palavras de hoje, eu tinha a impressão que me posicionar enquanto uma pessoa negra é roubar o lugar de fala dessas pessoas, que pelo que me relatavam era mais complexo do que eu vivia.
Anos depois descobri que eu vivi (e ainda vivo) as mesmas coisas, só não sabia. Aos poucos comecei meu processo de empoderamento, processo interminável, aconteceram algumas descobertas. Um dia com 15 anos, ás voltas com minha aparência, nunca me achei bonito,  enquanto penteava meu cabelo sem querer puxei ele pra cima, percebi que apesar de ele ser um cabelo cacheado (tipo 3c)  , ele ficou, puxei ele todo pra cima e vi que formou-se um Black Power, me senti incrível, bonito e poderoso...

Fiquei intrigado, sabia que Black Power significava poder preto ou algo parecido, como já existia a internet fui dar um Google e descobri o movimento Black Power, a partir de então comecei a armar um Black, agora consciente de seu significado, entretanto eu continuava no não lugar de não me assumir como negro. Era como se fosse uma luta muito próxima a mim, mas não me pertencia, sentia que devia estar ao lado e não à frente dessa luta , talvez eu me declarasse como pardo naquela época. Com certeza eu não sabia que negros eram pretos e pardos.
Me senti incrível, bonito e poderoso, sair na rua e foi muito complexo, diversos olhares, alguns de admiração, outros de estranhamento, reprovação, medo, começaram as “piadas” , pedidos e opiniões que jamais foram solicitadas:
·         - “Parece que você tem uma casa de cupim na cabeça”
·         - “Parece um microfone”
·         - “Porque você não corta esse cabelo”
·         - “Parece um mendigo”
·         - “Não consigo ver a lousa por causa do cabelo dele”
·         - “Posso cortar seu cabelo?”
·         - “Posso tocar no seu cabelo?”
·         - “Você não tem dinheiro para cortar o cabelo?”
Entre outras clássicas que pessoas pretas também estão cansadas de ouvir, fiquei abalado com algumas coisas que ouvi, no entanto eu nunca tinha me sentido tão bem, assim como, nunca tinha sido tão notado, deixei de passar despercebido, acreditei que valeria a pena cultivar o Black Power e acredito que através do cabelo entendi muitas coisas.
Mudei o círculo de amizades, comecei a frequentar um cursinho popular dentro da USP, lá nas aulas e história descobri a resistência das pessoas negras, a partir daí comecei a me identificar mais com a “possibilidade”. Porém, a ficha só caiu quando eu entrei na Universidade. Talvez para algumas pessoas seja necessário ser posto em uma situação limite para entender o racismo, não é que eu nunca tinha sofrido racismo antes, eu apenas não havia percebido
Entrei em uma universidade estadual a UNESP, lá vi tons de branco que eu nem sabia que existiam no Brasil. Como sempre vivi em periferias sempre vi muitas pessoas negras, dentro da Universidade era raro, mesmo sendo um campus pequeno, com menos de mil estudantes. Havia em minha sala eu, uma outra estudante e um intercambista do Congo, como minhas aulas tinham aproximadamente 25 estudantes, três  pessoas negras era um número quase significativo.
Dentro de todo o campus, que tinha em média 860 estudantes na época (2012), além das pessoas da minha sala, fui ver outra pessoa negra em outubro, as aulas começaram em fevereiro. Não é que eu não enxergasse as pessoas negras naquele recinto, é que elas eram quase inexistentes.
Como acontece com muitas(os) universitárias (os) pretas (os), nos unimos rapidamente, formamos nosso quilombo. Foi um alívio conversar com pessoas que passavam pelas mesmas situações que eu, um choque de realidade social, o racismo institucional velado, não adaptar-se, ser a primeira pessoa da família a entrar em uma faculdade pública, ou em uma faculdade e cobrar-se por essa questão.
Muitas vezes ter o emocional tão abalado, vontade desistir do curso, mas saber que essa não é uma opção, ainda mais quando se tem um ensino médio defasado, absolutamente nada garante que você passará no vestibular novamente. Caso isso aconteça os problemas enfrentados serão os mesmo.
 A solução encontrada é como muitas vezes em nossas vidas, aguentar enquanto dá. Encontrar estratégias de sobrevivência, estratégias para não enlouquecer, minha solução era me afastar por uma semana, com o tempo, como muitas coisas na vida das pessoas pretas, acostumamos, calejamos, calamos. Ficamos forte, mais pela obrigação, pela necessidade, do que pela vontade, pois não ficarmos vezes fortes, adoecemos, morremos.

A partir de todas essas reflexões, comecei a me perguntar e refletir diariamente, será que eu sou preto? O Caio em seu vídeo questiona-se, “será que para ser negro no Brasil é necessário ter sofrido racismo?” Quando me fiz essa pergunta anos atrás a resposta foi sim, acreditava e ainda acredito que o racismo é estrutural. Por muito tempo acreditei que nunca tinha sofrido racismo, mas ao buscar histórias do passado, vi que estava muito enganado.
 Comecei a entender que existia um motivo quando uma pessoa do nada saía correndo quando me via em andando sozinho a noite em uma rua escura, ERA RACISMO. 
Comecei a entender porque quando ia comprar algo milagrosamente aparecia um segurança do nada para acompanhar “disfarçadamente” todos os meus passos, ERA RACISMO.
Comecei a entender que na escola quando me zoavam pelos meus lábios grossos (beiço como chamavam) não era bullying ERA RACISMO.
Comecei a entender o porquê muitas vezes a GCM (Guarda Civil Metropolitana) à noite andava lado a lado comigo, desde de perto da estação de trem até e perto de minha casa, não era para me proteger, pois o potencial perigo era eu.
Além de, algumas situações que provavelmente só acontecem na adolescência das pessoas pretas. O pânico quando suas/seus colegas começam a namorar. Afinal na escola te dizem desde muito pequeno, como você é feio. Logo sabia eu que não namoraria, ficaria com ninguém da escola, mas como a Taís Araújo mencionou em uma entrevista, você acaba por fazer o papel de cupido.
Obviamente que enquanto adolescente mesmo fora do espaço escolar acreditei que não era bonito, então quando comecei a sentir vontade de me relacionar afetivamente, eu pensava, já que não sou bonito, tenho que ser pelo menos inteligente, então estudava muito, tentava estar por dentro de tudo que acontecia e ter o máximo de uma opinião crítica permitida a um adolescente de 15 anos.
Refletir sobre as questões citadas, me fez entender que sou preto, conheci diversas pessoas negras, a internet foi fundamental, comecei a ler os textos publicados no Geledés  - Instituto da Mulher Negra e no blogueiras negras, entrei em grupos de militância no facebook.
Me assumi preto em 2013, ano em que muitas lágrimas foram derramadas, ano em que descobri que é foda, foi foda e será foda. Quando eu via uma criança preta, principalmente uma menina, me dava um aperto no peito, eu pensava em tudo que passei na infância e em tudo que aquela criança linda e inocente que estava na minha frente, também poderia passar.
Depois pareceu-me óbvio que eu sempre fui preto, comecei a me questionar, porque eu passei de 2009 a 2013 na tentativa de me entender como preto. Era meu fenótipo (em resumo aparência) que me colocava em dúvida? Não! Fenotipicamente sou negro.
Embora, como disse acima, venho de um contexto de famílias miscigenadas, logo quando penso na família de meu pai, vejo que há pessoas mais escuras que eu, embora eu sabia também que sou mais escuro que muitas outras pessoas pretas.
Concordo com diversas/os estudiosas/os que apontam que o racismo no Brasil se dá a partir do fenótipo, então quanto mais aparente a negritude de uma pessoa, mais agressivo será o racismo para com ela. Tento então lutar a partir de meus privilégios, tento entender que eu tenho privilégios em relação a pessoas de pigmentação mais escura do que eu, além de tido também o acesso ao conhecimento, à universidade.
Compreendi que o racismo é tão cruel, que dificulta que pessoas pretas se reconheçam enquanto tal, visto que todas as vezes que nos falam de pessoas pretas elas estão em situações de inferiorização.

Crianças pretas de 9 anos, que ouvem na aula de história que suas/seus ancestrais foram escravizadas/os, como corpos dóceis, porque eram desunidos, não vão querer se identificar com essas pessoas, não vão querer ser aquilo, eu sabia que não era aquilo, eu não queria ser aquilo.
Se falassem que para estas crianças que em África, suas/seus ancestrais foram gente, podem ter sido rainhas e reis, se falassem que houve resistência das/os escravizadas/os, através de fugas, batalhas e formação de quilombos, seria mais fácil para as pessoas pretas se reconhecerem enquanto tal.
Se legislações como a lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de arte, cultura e história africana e afro brasileira, e a lei 11.645/2008 que também torna obrigatório ensino de arte, cultura e história, indígena e latino-americana. Se estudantes de pedagogia e licenciaturas tivessem em sua formação disciplinas específicas para tratar desses temas, para que quando começassem a exercer a docência tivessem mecanismos para aplicação e cumprimento dessas legislações, seria mais fácil par as pessoas negras se assumirem enquanto tal.
Se houvessem diversos livros, filmes e capas de jornais, com pessoas pretas, se nas novelas as pessoas pretas, não fossem representadas apenas como escravizadas/os, empregadas domésticas, motoristas, seguranças, habitantes de favelas, ou objetos para saciar o desejo de personagens brancas de classe média alta, (imaginário que é perpetuado na vida real), seria mais fácil para as pessoas pretas se descobrirem enquanto tal.
É importante é elucidar que empregadas domésticas, motoristas, seguranças, favelados, são dignos e merecem respeito e representatividade, porém a representação desses grupos precisam ser justa a todas as suas complexidades.  Ademais é necessário mostrar outras possibilidades de existência para as pessoas pretas.
Acredito que algumas das questões que acabo de citar, irão demorar um logo tempo até se concretizar, embora a passos lentos, alguns avanços sejam alcançados. Mas precisamos lutar a partir das armas que temos e lutaremos.
Creio que a união das pessoas pretas seja fundamental, creio que pessoas que já se consideram empoderadas podem ser fundamentais, como referencias para quem está se empoderando. É necessário também que lutemos por espaços de poder dentro da sociedade,  quando conseguirmos lembrar dos nossos, é necessário também que contamos nossas histórias por nossas próprias bocas.
Comecei este texto enorme com uma epígrafe da Ericka Huggins, e com uma fala dela termino, Em 2013, quando ela veio para o Brasil, ouvi sua fala no auditório da Geografia da FFLCH/USP, a fala que descreverei aqui, ilustra o que disse anteriormente.

Ericka Huggins, perguntou a todas/os estudantes presentes, quantos de vocês vem das periferias, apesar de estar na USP, como era a fala de uma ativista negra, haviam muitas/os estudantes negras/os no ambiente, então muitas/os levantaram a mão.  Ericka perguntou em seguida, quantas/os de vocês serão professoras/es, novamente muitas mãos foram levantadas. Então ela diz, prometam para mim, que quando vocês se formaram, vocês voltaram para os seus lugares de origem para compartilhar este conhecimento que vocês adquiriam.

Desde então tenho acreditado que a luta antirracista, só faz sentido quando compartilhada, afinal é impossível lutar sozinha/o. É necessário também não dissociar a luta antirracista de outras lutas, como a luta pela educação, saúde, transporte, afinal também estamos marginalizadas/os nestas questões. Além de lembrar que as opressões sociais acontecem concomitantemente, então é necessário lutar também contra o machismo, lesbohomotransfobia, gordofobia. É necessário lutar.



Agradecimentos pela revisão: Thaís Santos, Bito Santos, Juliana dos Santos, Mariana Egydio, Leonardo Machado , Vivia Santana.

Próximo texto em 18/01/2016Relações afetivas compostas exclusivamente por pessoas negras.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Portas abertas ou Para começo de conversa...


         Há tempos sinto a necessidade de escrever sobre alguns assuntos que me tocam, adiei essa tarefa por vários motivos, tais como, os diversos afazeres da vida cotidiana, por achar que não escrevo bem, por escrever textos muito longos, o que torna a leitura cansativa, atualmente acredito que escrevo textos tão extensos pois não escrevo com frequência, por isso crio esse espaço para me desafiar a escrever periodicamente, visto que a escrita é um exercício constante, acredito que com a prática as técnicas sejam aperfeiçoadas.
            Criei um tumblr para tentar ser moderninho, no entanto sou nostálgico e não resisti à tentação de criar também um blogspot, também porque utilizo muito melhor essa plataforma, ambos os espaços serão alimentados com o mesmo material, para que as leitoras possam escolher o espaço mais aconchegante para interagir, escreverei um texto por semana, sempre ás segundas-feiras, sempre entre ás 17h e 19h (Horário de Brasília), caso afazeres alterem essa periodicidade das postagens informarei previamente.
Resolvo escrever, pois há pouco tempo me descobri enquanto uma pessoa preta, aprofundarei essa descoberta no próximo texto que publicarei neste espaço, considero que desde 2013 passo por importantes processos de empoderamento, assim como, tenho feitas inúmeras reflexões das quais gostaria de sociabilizar
Ou seja, este será um espaço que se propõe a criar diálogos sobre as questões étnico raciais, é importante salientar que além de preto sou viado. No meu caso a descoberta da sexualidade fora muito menos complexa e dolorosa , do que a identificação como uma pessoa negra, exceto na idade escolar,   como as opressões sociais acontecem concomitantemente terei uma atenção especial a falar de temas relacionados as questões que tangem pessoas homossexuais negras, em especial para as viadas, afinal é este o meu lugar de fala.
Crio esse espaço também para desenvolver e refletir sobre alguns temas que me são caros e os vejo  pouco discutidos dentro dos espaços de militância, pretendo também a partir, do próximo mês sempre convidar uma pessoa preta e não hétero, para escrever sobre algumas questões específicas relacionadas a sua vivência.
Aproveito que sou um preto e acadêmico, logo tive acesso a um tipo de conhecimento, que infelizmente grande parcela da população negra ainda está excluída, embora com as ações afirmativas, aos poucos vemos esse número crescer, o que me faz ter bastante esperança para os próximos dez anos, por frequentar o espaço hostil da universidade pretendo trazer referências de autoras/es, para me auxiliar nas reflexões, também para divulgar para quem ainda não tem acesso aos muros e catracas das universidade estes pensamentos, teorias e conceitos, buscarei ser  simples, o que é diferente de superficial, afinal este espaço é um diário e não uma publicação acadêmica.
Além disso, aprofundarei alguns debates da minha área, a arte, em especial o teatro e a e a dança, e também a educação, sou um estudante de licenciatura em arte-teatro (artes cênicas)  também sociabilizarei as minhas produções artísticas que ultimamente tem sido voltadas para o povo preto.
Como já citei anteriormente, o próximo texto falará sobre como eu me descobri enquanto pessoa negra, será postado no dia 11/01/2016, entre ás 17h e 19h, falarei sobre como fui e ainda estou me empoderando, neste texto abordarei brevemente temas como mestiçagem e/ou colorismo.

Manas sejam muito bem-vindas a casa é nossa